Na corrente do Bengo (1)
No quarto, sentado, num cadeirão velho de veludo gasto e esverdeado, Tiago, amorfo, já só mantém do antigamente a tez bem morena que lhe ficou por herança. Tudo o resto são memórias e rugas finas, indeléveis. Deixa-se ficar parado no tempo porque lhe facilita o presente. Em determinadas circunstâncias até sorri, ainda que ninguém o veja. Um sorriso trocista, irónico. Volta a ser o menino que corria pela imensa praia de águas quentes, atrás de caranguejos que nunca conseguiria agarrar. Fica a sorrir. Os caranguejos ludibriavam-no, fugiam-lhe ali mesmo à beira mar ainda que ele se sentisse um reizinho naquela imensidão toda.
Tinha sido um miúdo feliz, feito para aquela terra que também era feita à sua medida. Haveria de saber o que era ser-se desterrado. De Angola só conheceu Luanda, porque já lá estava quando abriu os olhos a sério. O Lobito, onde nasceu, ficara para trás. Mantinha-se apenas nos álbuns de fotografias da família. Quando os revê – o que agora é raro – até nas fotos a preto e branco consegue sentir na pele toda a luminosidade quente que Luanda ainda hoje emana. Uma luz especial que tudo recorta, como se se fotografasse sempre em sobre exposição. Depois o sorriso morre. Basta um som da televisão ou lá de dentro, do resto da casa, e retorna a uma melancolia quase estudada.
No passado cometeu alguns erros irreparáveis – sim, de alguns ainda se recorda - que prefere esconder debaixo daquela apatia para a qual suga como se fosse um redemoinho todos os que entram no quarto – e por isso na maioria das vezes já ninguém lá vai. Até porque de cada vez que ouve o seu nome na outra ponta da casa prefere ser ele a ir rapidamente, demasiado até para alguém que se mantém horas a fio aparentemente imóvel no cadeirão. E isso tranquilizava-os; podem varrê-lo novamente do presente para o quarto dele. E ele volta, volta sempre para as suas águas mornas do mar de Luanda, volta para o cadeirão velho, volta para um passado quase igual a uma rede de pesca por remendar, mas que é o dele.
Sabe no entanto do “acidente” – como lhe chama - um atropelamento com fuga que o deixou com uma amnésia parcial que se recusa a regredir. E o cadeirão velho transforma-se ainda mais num local estafado de auto-análise, uma tentativa desesperada da mente resgatar um passado que teima em ocultar-se. Ainda assim, nunca se detém no motivo do “acidente”, deixa-o à deriva no passado. Quando o puzzle estiver completo – se alguma vez estiver - talvez o compreenda.
O carro saíra do nada e pelo ruído pressentira uma raiva que não combinava com o calor húmido contra o qual avançava devagar, com passadas pesadas. Fora do quarto, em voz baixa, as suposições tinham-se feito sentir, mas apenas em tempos, quando a casa era outra, o quarto era outro, e a terra ainda era Luanda. Depois ele próprio começara a ficar gasto e longínquo e acabara por se tornar desinteressante até para as poucas pessoas que ainda por ali deambulavam e lhe tinham conhecido partes do passado. Mais uma vez a transparência resvalava para a total invisibilidade como um vidro acabado de polir.
Só uma pessoa lhe poderia contar partes desse passado sem que ele duvidasse, mas nunca mais a procurara.
(Raquel Vasconcelos)
O que esconde este rio?
Tinha sido um miúdo feliz, feito para aquela terra que também era feita à sua medida. Haveria de saber o que era ser-se desterrado. De Angola só conheceu Luanda, porque já lá estava quando abriu os olhos a sério. O Lobito, onde nasceu, ficara para trás. Mantinha-se apenas nos álbuns de fotografias da família. Quando os revê – o que agora é raro – até nas fotos a preto e branco consegue sentir na pele toda a luminosidade quente que Luanda ainda hoje emana. Uma luz especial que tudo recorta, como se se fotografasse sempre em sobre exposição. Depois o sorriso morre. Basta um som da televisão ou lá de dentro, do resto da casa, e retorna a uma melancolia quase estudada.
No passado cometeu alguns erros irreparáveis – sim, de alguns ainda se recorda - que prefere esconder debaixo daquela apatia para a qual suga como se fosse um redemoinho todos os que entram no quarto – e por isso na maioria das vezes já ninguém lá vai. Até porque de cada vez que ouve o seu nome na outra ponta da casa prefere ser ele a ir rapidamente, demasiado até para alguém que se mantém horas a fio aparentemente imóvel no cadeirão. E isso tranquilizava-os; podem varrê-lo novamente do presente para o quarto dele. E ele volta, volta sempre para as suas águas mornas do mar de Luanda, volta para o cadeirão velho, volta para um passado quase igual a uma rede de pesca por remendar, mas que é o dele.
Sabe no entanto do “acidente” – como lhe chama - um atropelamento com fuga que o deixou com uma amnésia parcial que se recusa a regredir. E o cadeirão velho transforma-se ainda mais num local estafado de auto-análise, uma tentativa desesperada da mente resgatar um passado que teima em ocultar-se. Ainda assim, nunca se detém no motivo do “acidente”, deixa-o à deriva no passado. Quando o puzzle estiver completo – se alguma vez estiver - talvez o compreenda.
O carro saíra do nada e pelo ruído pressentira uma raiva que não combinava com o calor húmido contra o qual avançava devagar, com passadas pesadas. Fora do quarto, em voz baixa, as suposições tinham-se feito sentir, mas apenas em tempos, quando a casa era outra, o quarto era outro, e a terra ainda era Luanda. Depois ele próprio começara a ficar gasto e longínquo e acabara por se tornar desinteressante até para as poucas pessoas que ainda por ali deambulavam e lhe tinham conhecido partes do passado. Mais uma vez a transparência resvalava para a total invisibilidade como um vidro acabado de polir.
Só uma pessoa lhe poderia contar partes desse passado sem que ele duvidasse, mas nunca mais a procurara.
(Raquel Vasconcelos)
O que esconde este rio?
6 Comments:
A Margarida R. Pinto que se prepare, pois com esta história vamos tirar-lhe o pódio!
(A propósito...tentei ler um pouco do último livro dela, que a titulo promocional a Oficina do Livro distribuiu um capitulo gratuito, e confesso:não consegui passar da primeira página!)
Se der $ até cenas menos inocentes eu escrevo LOL...
KIDDINGGGGGGGGGGGGGGGG
:'(((((((
Malvados... não há sexo perde a piada!!!! Acham bem, acham!?
Claaap! Claaap!
Olá! Está alguém por aí?
O que se passa nunca mais escreveram? Vá lá!
Está ficar engraçado, continuem.
o pexoal tá de férias... axo eu... :/
Clap! Clap! Clap!
Digo eu!!!
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