terça-feira, janeiro 04, 2005

Na corrente do Bengo (1)

No quarto, sentado, num cadeirão velho de veludo gasto e esverdeado, Tiago, amorfo, já só mantém do antigamente a tez bem morena que lhe ficou por herança. Tudo o resto são memórias e rugas finas, indeléveis. Deixa-se ficar parado no tempo porque lhe facilita o presente. Em determinadas circunstâncias até sorri, ainda que ninguém o veja. Um sorriso trocista, irónico. Volta a ser o menino que corria pela imensa praia de águas quentes, atrás de caranguejos que nunca conseguiria agarrar. Fica a sorrir. Os caranguejos ludibriavam-no, fugiam-lhe ali mesmo à beira mar ainda que ele se sentisse um reizinho naquela imensidão toda.
Tinha sido um miúdo feliz, feito para aquela terra que também era feita à sua medida. Haveria de saber o que era ser-se desterrado. De Angola só conheceu Luanda, porque já lá estava quando abriu os olhos a sério. O Lobito, onde nasceu, ficara para trás. Mantinha-se apenas nos álbuns de fotografias da família. Quando os revê – o que agora é raro – até nas fotos a preto e branco consegue sentir na pele toda a luminosidade quente que Luanda ainda hoje emana. Uma luz especial que tudo recorta, como se se fotografasse sempre em sobre exposição. Depois o sorriso morre. Basta um som da televisão ou lá de dentro, do resto da casa, e retorna a uma melancolia quase estudada.
No passado cometeu alguns erros irreparáveis – sim, de alguns ainda se recorda - que prefere esconder debaixo daquela apatia para a qual suga como se fosse um redemoinho todos os que entram no quarto – e por isso na maioria das vezes já ninguém lá vai. Até porque de cada vez que ouve o seu nome na outra ponta da casa prefere ser ele a ir rapidamente, demasiado até para alguém que se mantém horas a fio aparentemente imóvel no cadeirão. E isso tranquilizava-os; podem varrê-lo novamente do presente para o quarto dele. E ele volta, volta sempre para as suas águas mornas do mar de Luanda, volta para o cadeirão velho, volta para um passado quase igual a uma rede de pesca por remendar, mas que é o dele.
Sabe no entanto do “acidente” – como lhe chama - um atropelamento com fuga que o deixou com uma amnésia parcial que se recusa a regredir. E o cadeirão velho transforma-se ainda mais num local estafado de auto-análise, uma tentativa desesperada da mente resgatar um passado que teima em ocultar-se. Ainda assim, nunca se detém no motivo do “acidente”, deixa-o à deriva no passado. Quando o puzzle estiver completo – se alguma vez estiver - talvez o compreenda.
O carro saíra do nada e pelo ruído pressentira uma raiva que não combinava com o calor húmido contra o qual avançava devagar, com passadas pesadas. Fora do quarto, em voz baixa, as suposições tinham-se feito sentir, mas apenas em tempos, quando a casa era outra, o quarto era outro, e a terra ainda era Luanda. Depois ele próprio começara a ficar gasto e longínquo e acabara por se tornar desinteressante até para as poucas pessoas que ainda por ali deambulavam e lhe tinham conhecido partes do passado. Mais uma vez a transparência resvalava para a total invisibilidade como um vidro acabado de polir.
Só uma pessoa lhe poderia contar partes desse passado sem que ele duvidasse, mas nunca mais a procurara.
(Raquel Vasconcelos)


O que esconde este rio?

Na corrente do Bengo (2)

Do largo da Mutamba, subiu devagar a leve inclinação que leva os transeuntes até à parte alta de Luanda onde ficam o Maianga e alguns edifícios militares da época colonial reconvertidos. A Alameda Afonso Henriques vendia sombras e cheiros que lhe pareciam estranhos. Agora tudo se vende, pensou; e quanto mais se vende menos há para vender. Meios tons e mais buracos, manchas e casas sem vidros. Tinha saudades da Luanda doutras eras, dos aromas e das cores que enchiam os ares, mas a fé num país novo tinha-o forçado a ficar e a passar por todas as dificuldades e desafios. Haveria de mudar um dia; a paz recente fez despertar de novo a vontade de ficar, o amor por este país estava enraizado na sua alma.
Tinha vindo desde a Restinga a olhar demoradamente a língua de areia a que os locais chamam de ilha, que separa as águas da baía das do oceano e que banha o Mussulo. Continuou junto à baía, regressando ao Estádio dos Coqueiros junto à orla do mar, como que a querer reviver os dias vividos projectando-os no futuro! Parou um pouco no Largo Serpa Pinto como se tivesse entrado na máquina do tempo...
Aquele telefonema tinha-lhe relembrado episódios dramáticos ocorridos uns anos antes. E aquela voz... pensou que tivesse morrido. Mas se não morreu de quem seria o corpo carbonizado encontrado junto ao mercedes metralhado? Num sítio onde nada se resolve, tinha sido espantoso o desfecho rápido do caso. Mas agora que começava a juntar tudo, receava pela sua segurança. Algo de muito sério se tinha passado e ele era um elo forte. O seu testemunho poderia desfazer álibis e incriminar gente importante. Todo o cuidado era pouco. Foi ao encontro marcado seguindo o percurso que lhe deram, garantido que não era seguido.
Do outro lado do largo do Maianga estava um carro parado. Lá dentro alguém lhe fez sinal....
(Charlie)



Largo do Maianga

segunda-feira, janeiro 03, 2005

O engano (3)

CONTINUEM!!! Leiam o RESUMO para terminar este capítulo!"