O som de alguém a bater à porta fê-lo regressar dos pensamentos. “Quem será?". Não esperava ninguém àquela hora e precisava de sair com urgência. “Porra, porra, devem estar a gozar comigo, não agora, não!”, implorou entre os dentes. Ao abrir a porta um vulto sai da penumbra. “Maria, eras a última pessoa que esperava ver!”. Sorriram um no outro, não era hora de palavras e a presença dela era providencial. Ricardo avançou para ela e, de rompante, ouviu-se um tiro. O som do petardo ecoou no quarto num grito insuportável. Ele olhou-a perplexo. O negro da noite invadiu-lhe a visão, nada via nem sentia, nada, estava exangue.
A letargia durou uns segundos, não mais do que isso; tudo regressava agora, primeiro a dor e depois os detalhes do cenário. Na mão, uma Beretta de 9 milímetros quente denunciava o disparo recente. “Não pode ser, não pode...”, encontrava-se agora uma sala sem mobília, ao fundo uma salamandra e uma porta... “Quem está aí?” balbuciou ao descortinar um vulto a sair da sala. Uma pontada invadiu-lhe a perna, olhou-a, uma bala tinha feito o seu trabalho. “Quem me trouxe para aqui? Porquê?”, os seus pensamentos voavam. A dor era agora mais forte, sem complacência, num crescendo insuportável. Sentiu-se desfalecer.
(
João Mãos de Tesoura)
Naquele breve instante lembrou-a, dias atrás, quando ela lhe sussurrava ao telefone um momento íntimo e já passado. Uma fantasia nunca esquecida, contada com palavras de suaves tonalidades a dar a noção da pátina do tempo, ganhando colorido sempre que a emoção, a afectividade dela transbordava, quente e sensual, na narrativa daquele retalho da vida.
Havia palavras que ditas por ela o deixavam palpipante, que se transformavam em beijos ardentes que quase sentia no corpo, por horas e horas. Então, ele experimentava uma vontade louca de a abraçar, de a beijar, de a cobrir, de a penetrar, de a fazer sua, de cevar bem dentro do corpo dela, de se molhar nela…de lhe sentir a respiração, o seu palpitar, fêmea, amante, companheira clandestina… E lembrava-se como naquela noite ficou só, se acariciou enquanto a pensava e lhe lembrava o rosto, sentindo-lhe os seios, o ventre, passeando os lábios longamente pelas coxas, bebendo –lhe o prazer e sentindo o dele, deixando-se ficar inundado até adormecer.
(
Tati)
Acordou com o som do seu telemóvel que se encontrava no chão no lado oposto da sala. Estendeu a mão e balbuciou “Maria...". A dor era agora mais amena. Sentou-se, não tinha perdido muito sangue. Com a camisa fez um garrote e levantou-se. A sala cheirava a tinta e o chão tinha o pavimento inacabado. “Que faço eu num apartamento novo?”. Nada fazia sentido, nada, a não ser a dor lancinante que o atormentava.
(
João Mãos de Tesoura)
Nada faz sentido...