terça-feira, abril 05, 2005

Anjo caído (1)

Não seriam duas horas da manhã. Ricardo, cansado de uma directa involuntária, teclava freneticamente um novo post. Iniciara-se nos blogues há meses, hoje não o teria feito. Parou por uns momentos, limpou o suor da testa com a manga da camisa e, num gesto automático, acendeu mais um cigarro. O cinzeiro não mentia, há várias horas que ele não saí dali. Entre as beatas encontravam-se marcas de mulher, batom esquecido nos filtros de outra marca. Olhou o monitor perdidamente enquanto lançava uma baforada emanada dos confins dos seus pulmões. “Porque razão me meti nisto?!”, pensou. Não era um internauta vulgar, escrevia em 3 blogues, todos diferentes, todos necessários, hoje mais do que nunca. O tempo escasseava, o relógio não mentia e Ricardo sabia que o desfecho seria brutal, implacável. Sabia ainda que é ténue a fronteira entre o real e o virtual; explorara essa dicotomia até ao limite, até os outros cederem. Era um manipulador inato, sensual, insinuante, sem interesse maior do que o seu próprio prazer. Só o confronto de ideias o fascinava, sentir no outro um par; os desafios, esses, era ele que os criava. Contudo, hoje é ele a vítima, o acossado.
(João Mãos de Tesoura)



A areia foi testemunha...

Anjo caído (2)

Há sempre um dia em que alguém nos supera em matéria de manipulação. Ele era um homem brilhante, engraçado e sedutor, assim pensavam as pessoas que o conheciam superficialmente. Gostava de ser desejado e fazia-se sempre esperar. Falava com cada pessoa como se fosse realmente importante e única no mundo. Depois, usava-as para fomentar o seu sucesso e a sua brilhante carreira. Gostava de ser admirado, quase venerado. Ele conseguia criar uma relação de quase dependência com as pessoas que passavam pelas suas mãos, ficavam à espera duma palavra de aprovação e sentiam-se rejeitadas com uma crítica apenas. Era cioso da sua aparência e andava sempre impecável. Menos naquela noite mas o motivo era forte...
(Jacky)

No quarto, o ambiente era agora irrespirável. Por momentos viu o seu reflexo no monitor. Aquele não seria ele mas sim o outro, não queria continuar a viver assim, pensou. Pensamento vão este que o acalenta, jamais imaginaria um desfecho assim. Não valia a pena enganar-se mais, o post estava terminado e explicaria muita coisa, o suficiente para ele saber que não ficariam pontas de fora. Dele já não restava nada, os outros haveriam de compreender. O cigarro esquecido no cinzeiro consumiu-se sozinho deixando uma frágil forma suspensa em cinzas. “Que se lixe o cancro...” e tirou o último cigarro do pacote de Marlboro. O travo era diferente, como se fosse o último, e só por isso saboreou-o lentamente. Na testa, no corpo, nas mãos, o suor não enganava a tensão sentida, o sofrimento incontrolado.
(João Mãos de Tesoura)

Levantou-se e dirigiu-se inconsciente para a pequena varanda do seu quarto. Um arrepio percorre-lhe o corpo ao pisar, descalço, o chão de pedra refrescada pela noite. Apesar do desconforto, o ar fresco e a pedra fria despertam-lhe os sentidos e dão-lhe um vigor momentâneo.
(Whatever)

Ele sabia que o encontro seria fatal, mas nem o receio da morte o fez hesitar. Mirou o mar, a lua brincava no prateado da ondulação. As folhas do parque, essas, cintilavam na brisa outonal numa dança sarcástica, num gozo fúnebre que ele pressentia. Inspirou fundo, pegou na pistola que deixara em cima da mesa da varanda e encostou-a à face. A decisão estava tomada. Guardou a pequena arma no bolso das calças e perdeu-se novamente nas memórias.
(João Mãos de Tesoura)


Medo de quê?

Anjo caído (3)

O som de alguém a bater à porta fê-lo regressar dos pensamentos. “Quem será?". Não esperava ninguém àquela hora e precisava de sair com urgência. “Porra, porra, devem estar a gozar comigo, não agora, não!”, implorou entre os dentes. Ao abrir a porta um vulto sai da penumbra. “Maria, eras a última pessoa que esperava ver!”. Sorriram um no outro, não era hora de palavras e a presença dela era providencial. Ricardo avançou para ela e, de rompante, ouviu-se um tiro. O som do petardo ecoou no quarto num grito insuportável. Ele olhou-a perplexo. O negro da noite invadiu-lhe a visão, nada via nem sentia, nada, estava exangue.

A letargia durou uns segundos, não mais do que isso; tudo regressava agora, primeiro a dor e depois os detalhes do cenário. Na mão, uma Beretta de 9 milímetros quente denunciava o disparo recente. “Não pode ser, não pode...”, encontrava-se agora uma sala sem mobília, ao fundo uma salamandra e uma porta... “Quem está aí?” balbuciou ao descortinar um vulto a sair da sala. Uma pontada invadiu-lhe a perna, olhou-a, uma bala tinha feito o seu trabalho. “Quem me trouxe para aqui? Porquê?”, os seus pensamentos voavam. A dor era agora mais forte, sem complacência, num crescendo insuportável. Sentiu-se desfalecer.
(João Mãos de Tesoura)

Naquele breve instante lembrou-a, dias atrás, quando ela lhe sussurrava ao telefone um momento íntimo e já passado. Uma fantasia nunca esquecida, contada com palavras de suaves tonalidades a dar a noção da pátina do tempo, ganhando colorido sempre que a emoção, a afectividade dela transbordava, quente e sensual, na narrativa daquele retalho da vida.
Havia palavras que ditas por ela o deixavam palpipante, que se transformavam em beijos ardentes que quase sentia no corpo, por horas e horas. Então, ele experimentava uma vontade louca de a abraçar, de a beijar, de a cobrir, de a penetrar, de a fazer sua, de cevar bem dentro do corpo dela, de se molhar nela…de lhe sentir a respiração, o seu palpitar, fêmea, amante, companheira clandestina… E lembrava-se como naquela noite ficou só, se acariciou enquanto a pensava e lhe lembrava o rosto, sentindo-lhe os seios, o ventre, passeando os lábios longamente pelas coxas, bebendo –lhe o prazer e sentindo o dele, deixando-se ficar inundado até adormecer.
(Tati)

Acordou com o som do seu telemóvel que se encontrava no chão no lado oposto da sala. Estendeu a mão e balbuciou “Maria...". A dor era agora mais amena. Sentou-se, não tinha perdido muito sangue. Com a camisa fez um garrote e levantou-se. A sala cheirava a tinta e o chão tinha o pavimento inacabado. “Que faço eu num apartamento novo?”. Nada fazia sentido, nada, a não ser a dor lancinante que o atormentava.
(João Mãos de Tesoura)



Nada faz sentido...