sexta-feira, fevereiro 04, 2005

O engano (1)

O avião aterrou sem novidade. O dia estava cinzento e Heathrow não convidava; não é um aeroporto bonito, daqueles em que as gares nos esmagam com lobbies monumentais de aço e vidro. Ricardo chegou só mas a excitação era grande. Eva não iria falhar, não depois do que cresceu entre eles; a cumplicidade enraizara-se e com ela vieram as verdades, as ocultas. Ela era casada há 8 anos; não era infeliz mas não encontrava no casamento o sal da vida, não se sentia viva. Pediu-lhe para tolerar uma situação dúbia, algo que o tempo se encarregaria de resolver, só ainda não sabia como.
Tinham passados dois meses desde o primeiro encontro e a oportunidade surgiu quando Eva lhe falou numa feira em Londres. Ela era marketer da P&G e iria participar na apresentação de uma nova linha de produtos. Ricardo não deixou fugir a ocasião e sugeriu acompanhá-la. A pausa na resposta ao telefone deixou-o inseguro.

Eva: sabes que eu sou casada e vou com colegas...
Ricardo: sei... mas sei também que podemos contornar isso, basta querermos e usarmos a nossa imaginação.
Eva: ... tu tentas-me... ai, Ricardo, como seria bom...
Ricardo: vai ser, deixa-me tratar de tudo! Qual é o hotel?
Eva: olha, eu vou estar no Royal Garden (pausa longa)... querido, já me convenci... seria óptimo se pudesses ficar aí, assim dormíamos juntos...
Ricardo: claro que ficamos, a Space nunca me falhou uma reserva, nem mesmo as last minute. Já agora aproveitamos e ficamos o fim-de-semana, assim teremos dois dias só para nós!
Eva: tu és terrível... está bem! Vou dizer ao Artur que aproveito para visitar uma amiga de faculdade que vive em Knightsbridge.
Ricardo: e sou eu o terrível... (risos)
Eva: não me provoques, tu não me provoques que ainda desisto! (risos)
Ricardo: e à noite acordavas e pensavas em mim?
Eva: e mais qualquer coisa...
Ricardo: hmmm... tenho de ver isso!
Eva: agora vai, chato... tenho de trabalhar!
Ricardo: e eu também, tu é que pensas que a vida é fácil e que as viagens caem do céu! (risos)
Eva: pois... falamos logo, beijinhos!
Ricardo: beijo!

Viajar de táxi em Londres é uma experiência única. Não só porque o london cab não tem igual, mas também porque circular pela esquerda nunca deixa de ser estranho. O trajecto foi agradável e ele aproveitou para relembrar uma viagem que fizera com os pais há muitos anos atrás.
O táxi entrava agora no parque do hotel. Como era belo; a secretária que lho marcara tinha razão, seria certamente um dos hotéis mais belos da cidade. Já no lobby dirigiu-se à recepção. Fez um check-in rápido pois a vontade de um banho era muita. Tinha um recado, era dela.

“Querido, tive de sair mais cedo, chegarei por volta das cinco. Aproveita e descansa, vou precisar de ti em forma! Beijos, Eva”.

Dirigui-se aos elevadores quando se cruzou com um grupo de italianos que entrava ruidosamente numa das salas de reuniões do hotel. Voltou atrás por impulso. Na recepção um dos funcionários apressou-se a perguntar-lhe se estava tudo bem. Ricardo sorriu e disse que ainda era cedo para reclamações. A pergunta que tinha era simples, a resposta foi devastadora. Não havia nenhuma feira de consumíveis, Eva não viera em trabalho!
(João Mãos de Tesoura)



A cama era king size...

O engano (2)

Instalado o mistério, agora só faltava descobrir todas as peças do puzzle e depois juntá-las…
“ Porque raio me mentiu ela?”- pensava Ricardo enquanto se dirigia ao elevador.
Tão absorto estava que nem se dera conta de alguém que seguia todos os seus gestos.
“Vou pôr-me em campo e tratar de fazer alguns telefonemas!”

Começaria por telefonar para a empresa onde Eva trabalhava. Mas, à medida que organizava ideias e tomava decisões, ia-se instalando algum desconforto e muitas dúvidas.
Entrou no quarto e sem prestar grande atenção ao espaço que o rodeava, procurou o telefone...
(Eva[são])

Do outro lado da linha o sinal continuo de "ocupado". O nervosismo começava a aumentar, pois cada chamada era uma tentativa falhada. O telemóvel de Eva estava desligado e do escritório dela ninguém atendia. O que se passaria? Sentia-se completamente desorientado.
Arrefecer as ideias. Era isso que necessitava fazer. Um duche talvez não fosse má ideia. Como um autómato dirigiu-se à casa de banho e abriu a torneira da água quente. Voltou atrás e olhou o telefone pensativamente. Entrou no banho para relaxar. Nada como um longo duche de água quente. Sempre fora este o método mais eficaz de por as ideias em ordem, nunca falhara, não iria ser agora.
Completamente absorto nem se deu conta da entrada de alguém no quarto. Subitamente apercebeu-se de que não estava só, pois havia qualquer coisa no ar que denunciava uma presença. Ricardo reconheceu o odor que lhe entrava pelas narinas e lhe enchia os pulmões. Eva estava ali. Cego de todos os sentidos nem se questionou como ela teria entrado.
Envolto numa toalha irrompeu no quarto. Não se enganara. Ali estava Eva, como uma miragem, mais sedutora do que nunca.
(Cherry Pie)

Ricardo, estupefacto, balbuciou: mas, não vinhas... às cinco?
Eva: hmmm... parece que não gostaste de me ver... (sorriso)
Ricardo, disfarçando: sempre que te vejo fico assim, aparvalhado...
Eva: hahaha! Gostava de te ver com essa cara, há-de vir o dia...

Ele, aproximando-se, agarrou-a e olhando-a nos olhos penetrou para além do azul; o seu olhar era sedutor, era ele quem dominava. Eva, percebendo o momento, deixou-se ir na corrente do desejo. Ricardo levantou-a no ar e deixou-a enredar as pernas no seu torso. Enquanto se beijavam apaixonadamente, percorreu o quarto até a encostar à parede, mesmo ao lado da cama de dossel em ferro forjado, uma peça única, como todas as outras do hotel. Ela gemeu no embate, sorrindo de seguida a aprovar o desafio. Eva desceu com as mãos no peito e, num movimento só, arranhou-lhe a pele.

Ricardo: estás louca?
Eva, sorrindo: no rules... ok!
Ricardo: no skin... for sure!
Eva: hahaha! Adoro-te!

Deixando-se cair para o lado, Ricardo projectou-a para cima da cama. O colchão devolveu-a como uma mola num pequeno salto que a fez rir. Abraçaram-se e rebolaram na cama como dois miúdos. Eva ficara por cima dele, sentada, com um sorriso provocador.

Eva: fecha os olhos!
Ricardo: para quê?
Eva: nunca se questiona uma surpresa!

Ricardo, fechando os olhos, deixou escapar um longo suspiro como quem espera o prazer; sentia-se egoísta, queria receber. Eva, agarrando um lenço pousado numa das mesinhas de cabeceira, vendou-lhe os olhos.

Ricardo: que fazes?
Eva: calma, vais gostar!

Não lhe falaria agora, pensou, teria de haver uma explicação plausível. Aquela mulher nunca fora mistério, desde o início que lhe mostrou as cartas e ele conhecia bem as amarras e caminhos por onde ela andava. Fora sempre franca, nunca lhe escondera nada, nunca, nem os temas mais íntimos como um aborto...
Eva, agarrando-lhe um pulso, algemou-o à cabeceira num gesto rápido. Ainda não se tinha recomposto da surpresa e já Eva lhe algemara o outro pulso. Ela, pressentindo o espanto disse-lhe, “relaxa... estás por minha conta e vou-te levar aonde nunca foste, nem nos teus sonhos mais loucos!”
Batem à porta insistentemente.

Ricardo: o que se passa?

Agora o tom era de pânico. Eva, retirou-lhe a venda e colocando-lhe o indicador na boca fez, “Schhhh!”. Levantou-se, recompôs o vestido e dirigiu-se à porta da suite que ficava noutra sala. Ele conseguia ouvir as vozes em sussurro, como se quisessem esconder algo. O tempo parecia uma infinidade e Ricardo começava a impacientar-se, foi então que gritou, “Eva, então?!”.
Os passos fizeram-se sentir na sua direcção, não seria só ela, viria acompanhada. Entraram no quarto; ao lado de Eva uma mulher asiática, japonesa pelos traços ligeiramente angulosos que as diferenciam das chinesas; esta dispara de pronto: “Is this the guy?”. Eva, sorrindo, confirma com um movimento de cabeça. Saem do quarto deixando atrás de si a porta fechada. Ricardo não esboçou um gesto, não proferiu uma palavra. O assombro era tal que não percebera que estava encarcerado no seu próprio quarto.
(João Mãos de Tesoura)



Preso ao amor...

O engano (3)

Ficou entregue a si próprio enquanto pelo seu espírito passavam os mais díspares pensamentos. O silêncio tomava conta do ambiente e ele ia reparando angustiado nos pormenores do espaço onde estava. Com esforço, rodou a cabeça e olhou para o telemóvel tentando alcançá-lo com os pés mas sem sucesso. Embora não conseguisse distinguir os números, viu como os dígitos iam mudando de minuto a minuto marcando angustiados a passagem do tempo. A pouco e pouco os sons mais íntimos iam tomando volume. Ouviu o latejar do coração nas têmporas lembrando-lhe que a vida depende apenas do ritmo, esse bater contínuo que agora tanto o incomodava. Pequenos ruídos que passavam do exterior e que ele adivinhava vagamente. Por duas vezes gritara por ela mas o som perdera-se no isolamento do quarto. Os hotéis tendem a ter cada vez melhores isolamentos acústicos e ele pensou que nem um tiro de carabina chamaria a atenção fosse de quem fosse. As mãos doíam-lhe e nos pulsos estavam vincadas as algemas que os imobilizavam. Tentou rodar o corpo para uma posição mais confortável e verificou com desagrado como estava entorpecido. Quanto tempo teria já passado? Perdera a noção mas tinha a sensação que várias horas tinham decorrido.
Meio adormecido deu sinal de si num relance. Olhou para a porta e viu um vulto entrar. Tentou levantar-se mas com um grito de dor voltou a cair na cama.
Gritou: tira-me daqui imediatamente!
O vulto, coberto com uma capa que lhe escondia a cara, colocou em cima da mesa um pequeno pires. Despejou o conteúdo. Umas ervas em cima das quais ele deitou umas gotas dum líquido espesso e esbranquiçado. Acendeu um isqueiro e esperou que estivesse bem incandescente. Soprou uma ou duas vezes e depois retirou-se.
Pesasse embora a fraca iluminação com que elas tinham deixado o ambiente horas antes, tinha conseguido aperceber-se que se tratava da asiática que estivera com Eva. Aos poucos ficou tudo cheio de fumo. Um aroma doce e acre enchiam-lhe as narinas batendo-lhe directamente no cérebro. Sentiu-se transportado numa enorme nuvem de paz para um mundo onde os sonhos tomam o lugar da realidade e adormeceu.
Acordou de repente no meio duma enorme algazarra. Estava escuro e toda a cama mexia. Sentiu que não estava já algemado à cama embora continuasse com os pulsos presos. Tentou levantar-se e bateu com a cabeça em algo metálico. Caiu repentinamente num movimento brusco. Só aí se deu conta que estava preso e amordaçado dentro do porta-bagagens dum carro...
(Charlie)



Quem o teria vestido e amarrado? Porquê?

O engano (4)

Pouco podia fazer, pois estava fortemente amarrado e qualquer esforço tirar-lhe-ia as energias que, provavelmente, necessitaria mais tarde. Ricardo perdeu a noção do tempo. Sentia o carro deslocar-se a uma velocidade alucinante sem uma única paragem durante, o que lhe pareceram ser, horas de viagem.
O carro parou. Mais atento que nunca Ricardo tentava escutar o que se passava do lado de fora. Deviam estar num local isolado pois só o silêncio se fazia ouvir. Sentiu passos aproximarem-se da bagageira do carro. Ficou sem saber o que fazer: fingir-se adormecido ou mostrar-se bem acordado? Naquele momento a primeira opção pareceu-lhe a mais acertada, afinal todos os seus sentidos estavam despertos.
Acompanhou com atenção todos os movimentos: alguém abriu a bagageira; foram-lhe tiradas as amarras e a mordaça e sentiu-se levado por duas pessoas - homens, certamente, pelo tamanho das mãos que o seguravam. Estava livre, mas decidiu continuar com o fingimento.
"Libertaram-me. Deste modo posso fugir se algo correr mal...como se pudesse estar a ser pior!", pensou.
Sabia que estava perto do mar: os odores não enganavam e podia ouvir as ondas a embater contra uns rochedos. Entraram numa casa. Cheirava a limpo.Só quando se sentiu pousado sobre uma cama macia e ouviu os passos dos seus sequestradores a se afastarem que Ricardo reagiu.
Abriu os olhos. Não podia acreditar no que via. O local era idílico. Estaria a sonhar? Ouviu água a correr e dirigiu-se para o local de onde vinha o som. Empurrou a porta. Numa banheira cheia de espuma estava Eva munida do seu melhor sorriso:"Amor, porque te demoraste tanto? Vem, junta-te a mim!"
(Cerejinha)



Seria tudo um jogo?

O engano (5)

Ele sentia crescer dentro de si um turbilhão de sensações e emoções contraditórias. Por um lado, sentia-se manipulado e enganado com toda esta encenação de Eva. Quem seria ela afinal? Por que motivo o teria convidado para uma viagem a Londres para depois raptá-lo até àquele lugar? Por outro lado, desejava-a ainda mais. Todos esses contratempos tinham despertado toda a lascívia do seu corpo.
Não lhe respondeu. Falar para quê? Agora só queria dar asas ao seu desejo...
(Jacky)

Sem proferir uma palavra e sem permitir que um único músculo da cara denunciasse a sua surpresa, descalçou os sapatos pausadamente e, com um gesto metódico, alinhou-os junto ao magnífico arranjo de cactos e seixos rolados do canteiro que imponentemente dominava aquele ângulo, bordejando a enorme parede de vidro sobranceira à vista de mar. Mantendo sempre a perfeita tranquilidade dos movimentos, avançou para a banheira sem nunca desviar os seus dos olhos dela. Queria que Eva experimentasse o suspense do improvável. Não era aquele um jogo? Então, era a sua vez de jogar.
Completamente vestido, entrou na banheira como quem se afoga, deixando o corpo conduzir os anseios de dentro para fora, mas sem permitir que as sensações circulassem de fora para dentro. Sentia a água tépida alastrar pelas suas roupas até o ensoparem, mas agia como um monstro que não sente, apenas devora. Eva, apanhada pela surpresa, imobilizou numa expressão entre o desejo e o medo. Ricardo podia, enfim, perceber que podia executar todos os seus planos de vingança; um dia era caça, outro caçador.
(Lince da Malcata)



Agora a tacada é minha!

O engano (6)

A expressão de Ricardo não deixava transparecer nenhuma réstia de emoção, tinha um ar penetrante e duro. As bolhas da hidromassagem invadiam a banheira; passou os dedos dos pés num gesto lento e demorado pelo corpo de Eva enquanto esta tentava alcançá-lo. Ele impediu-a de se mover num gesto delicado e ao mesmo tempo insensível, sentia que devia ser ele a dominar; as cartas estavam lançadas e ele detinha a jogada mais alta.
Eva estava deitada na banheira com a nudez que ele já conhecia; ele, vestido e ensopado, olhou-a olhos nos olhos ao mesmo tempo que o seu pé parava de a acariciar para, lentamente, ir aproximando os corpos. Eva deixou transparecer o desejo e disse em tom baixo, "Vem meu querido, sou toda tua!" e fechou os olhos à espera. Contudo, Ricardo parou, “como podia uma mulher tão bela ser tão maquiavélica”, pensou.
Esta mulher tinha enfeitiçado Ricardo. No seu íntimo ele sentia um desejo inexplicável de a possuir; aproximou o seu rosto à cara dela, começou a acariciá-la, passou a língua no pescoço, um toque apenas. Eva sentiu um arrepio, abriu os olhos e começou a desabotoar-lhe a camisa. A roupa molhada evidenciava-lhe as formas e ela, enquanto o despia, olhava maravilhada para aquele corpo perfeito sem o exagero do esforço nem a gordura sedentária. Passou-lhe as mãos pelo peito e começaram a beijar-se de uma forma selvagem e apaixonada. Nesse momento os seus corpos tocaram-se provocando em ambos a ânsia pelo passo seguinte. Ricardo estava a deixá-la completamente louca de desejo... Assim ficaram durante um tempo que pareceu infindável, até que Eva murmurou palavras que o deixaram estupefacto, "amo-te!". Ricardo, suspeitou do jogo, sorriu com ar sarcástico e disse "agora sim, estamos quites...". Levantou-se, saiu da banheira e o seu corpo desapareceu na névoa do banho.
(Eva)

Eva sentiu medo, “será que ele sabe?”. A luz apagou-se e ela recolheu as pernas num reflexo defensivo, ficando sentada na posição fetal; a escuridão foi acompanhada pelo som da água que ia e regressava em ondas provocadas pelo movimento inusitado. Olhou à volta e fixou-se no raio de luz que entrava pela fresta da porta. Milhões de gotículas dançavam no feixe, subindo e descendo num movimento caótico. Repentinamente algo se atravessou à frente do clarão, ficando o espaço confinado ao silêncio do seu pânico. Sentiu frio, um desconforto insuportável mas permaneceu imóvel; os músculos não lhe respondiam, estava completamente indefesa. Num esforço sobre-humano, esticou o braço e tacteou o chão à procura do telemóvel. O gesto era em câmara lenta, com o vagar de quem não quer ser notado. Os dedos sentiram algo, pareciam ser os seus chinelos, mas não, eram sapatos de homem. Tentou empurrá-los mas não se moveram...
(João Mãos de Tesoura)



De quem seriam estas mãos?