quinta-feira, maio 05, 2005

Conceito

Vou iniciar aqui um conjunto de posts a que chamarei “O mistério do blogueiro desaparecido!”. Vou escrever o início, vários “intermezzi” e o final da história.
Conto com a vossa participação na escrita do conto. Assim, basta colocarem nos comentários a continuação da sequência que tiver sido apresentada. Por uma questão de segurança não são permitidos comentários anónimos. Quem desejar manter o anonimato pode enviar o texto por email. Reservo-me o direito de escolher entre os vossos comentários aqueles que entender estarem mais próximos do espírito da narrativa. Vamos fazer disto uma experiência gira, apela-se à imaginação e qualidade do verbo!
Aos outros, comentem como leitores, dêem sugestões, critiquem o que deve ser criticado e elogiem o que deve ser elogiado. Vamos estimular os autores!
Fica a promessa; se a obra acabar eu faço-a livro! E claro, cada trecho terá dono; as referências serão publicadas! As receitas, se as houver, reverterão para a Casa do Gil.


Leiam o RESUMO pois serve de linha editorial para a escrita de novos posts.

A estória não está escrita de forma sequencial, tem vários flashbacks o que pode dificultar a escrita. Contudo, à medida que for tomando corpo ficará mais inteligível e o RESUMO é fundamental para não se perderem na escrita.


terça-feira, abril 05, 2005

Anjo caído (1)

Não seriam duas horas da manhã. Ricardo, cansado de uma directa involuntária, teclava freneticamente um novo post. Iniciara-se nos blogues há meses, hoje não o teria feito. Parou por uns momentos, limpou o suor da testa com a manga da camisa e, num gesto automático, acendeu mais um cigarro. O cinzeiro não mentia, há várias horas que ele não saí dali. Entre as beatas encontravam-se marcas de mulher, batom esquecido nos filtros de outra marca. Olhou o monitor perdidamente enquanto lançava uma baforada emanada dos confins dos seus pulmões. “Porque razão me meti nisto?!”, pensou. Não era um internauta vulgar, escrevia em 3 blogues, todos diferentes, todos necessários, hoje mais do que nunca. O tempo escasseava, o relógio não mentia e Ricardo sabia que o desfecho seria brutal, implacável. Sabia ainda que é ténue a fronteira entre o real e o virtual; explorara essa dicotomia até ao limite, até os outros cederem. Era um manipulador inato, sensual, insinuante, sem interesse maior do que o seu próprio prazer. Só o confronto de ideias o fascinava, sentir no outro um par; os desafios, esses, era ele que os criava. Contudo, hoje é ele a vítima, o acossado.
(João Mãos de Tesoura)



A areia foi testemunha...

Anjo caído (2)

Há sempre um dia em que alguém nos supera em matéria de manipulação. Ele era um homem brilhante, engraçado e sedutor, assim pensavam as pessoas que o conheciam superficialmente. Gostava de ser desejado e fazia-se sempre esperar. Falava com cada pessoa como se fosse realmente importante e única no mundo. Depois, usava-as para fomentar o seu sucesso e a sua brilhante carreira. Gostava de ser admirado, quase venerado. Ele conseguia criar uma relação de quase dependência com as pessoas que passavam pelas suas mãos, ficavam à espera duma palavra de aprovação e sentiam-se rejeitadas com uma crítica apenas. Era cioso da sua aparência e andava sempre impecável. Menos naquela noite mas o motivo era forte...
(Jacky)

No quarto, o ambiente era agora irrespirável. Por momentos viu o seu reflexo no monitor. Aquele não seria ele mas sim o outro, não queria continuar a viver assim, pensou. Pensamento vão este que o acalenta, jamais imaginaria um desfecho assim. Não valia a pena enganar-se mais, o post estava terminado e explicaria muita coisa, o suficiente para ele saber que não ficariam pontas de fora. Dele já não restava nada, os outros haveriam de compreender. O cigarro esquecido no cinzeiro consumiu-se sozinho deixando uma frágil forma suspensa em cinzas. “Que se lixe o cancro...” e tirou o último cigarro do pacote de Marlboro. O travo era diferente, como se fosse o último, e só por isso saboreou-o lentamente. Na testa, no corpo, nas mãos, o suor não enganava a tensão sentida, o sofrimento incontrolado.
(João Mãos de Tesoura)

Levantou-se e dirigiu-se inconsciente para a pequena varanda do seu quarto. Um arrepio percorre-lhe o corpo ao pisar, descalço, o chão de pedra refrescada pela noite. Apesar do desconforto, o ar fresco e a pedra fria despertam-lhe os sentidos e dão-lhe um vigor momentâneo.
(Whatever)

Ele sabia que o encontro seria fatal, mas nem o receio da morte o fez hesitar. Mirou o mar, a lua brincava no prateado da ondulação. As folhas do parque, essas, cintilavam na brisa outonal numa dança sarcástica, num gozo fúnebre que ele pressentia. Inspirou fundo, pegou na pistola que deixara em cima da mesa da varanda e encostou-a à face. A decisão estava tomada. Guardou a pequena arma no bolso das calças e perdeu-se novamente nas memórias.
(João Mãos de Tesoura)


Medo de quê?

Anjo caído (3)

O som de alguém a bater à porta fê-lo regressar dos pensamentos. “Quem será?". Não esperava ninguém àquela hora e precisava de sair com urgência. “Porra, porra, devem estar a gozar comigo, não agora, não!”, implorou entre os dentes. Ao abrir a porta um vulto sai da penumbra. “Maria, eras a última pessoa que esperava ver!”. Sorriram um no outro, não era hora de palavras e a presença dela era providencial. Ricardo avançou para ela e, de rompante, ouviu-se um tiro. O som do petardo ecoou no quarto num grito insuportável. Ele olhou-a perplexo. O negro da noite invadiu-lhe a visão, nada via nem sentia, nada, estava exangue.

A letargia durou uns segundos, não mais do que isso; tudo regressava agora, primeiro a dor e depois os detalhes do cenário. Na mão, uma Beretta de 9 milímetros quente denunciava o disparo recente. “Não pode ser, não pode...”, encontrava-se agora uma sala sem mobília, ao fundo uma salamandra e uma porta... “Quem está aí?” balbuciou ao descortinar um vulto a sair da sala. Uma pontada invadiu-lhe a perna, olhou-a, uma bala tinha feito o seu trabalho. “Quem me trouxe para aqui? Porquê?”, os seus pensamentos voavam. A dor era agora mais forte, sem complacência, num crescendo insuportável. Sentiu-se desfalecer.
(João Mãos de Tesoura)

Naquele breve instante lembrou-a, dias atrás, quando ela lhe sussurrava ao telefone um momento íntimo e já passado. Uma fantasia nunca esquecida, contada com palavras de suaves tonalidades a dar a noção da pátina do tempo, ganhando colorido sempre que a emoção, a afectividade dela transbordava, quente e sensual, na narrativa daquele retalho da vida.
Havia palavras que ditas por ela o deixavam palpipante, que se transformavam em beijos ardentes que quase sentia no corpo, por horas e horas. Então, ele experimentava uma vontade louca de a abraçar, de a beijar, de a cobrir, de a penetrar, de a fazer sua, de cevar bem dentro do corpo dela, de se molhar nela…de lhe sentir a respiração, o seu palpitar, fêmea, amante, companheira clandestina… E lembrava-se como naquela noite ficou só, se acariciou enquanto a pensava e lhe lembrava o rosto, sentindo-lhe os seios, o ventre, passeando os lábios longamente pelas coxas, bebendo –lhe o prazer e sentindo o dele, deixando-se ficar inundado até adormecer.
(Tati)

Acordou com o som do seu telemóvel que se encontrava no chão no lado oposto da sala. Estendeu a mão e balbuciou “Maria...". A dor era agora mais amena. Sentou-se, não tinha perdido muito sangue. Com a camisa fez um garrote e levantou-se. A sala cheirava a tinta e o chão tinha o pavimento inacabado. “Que faço eu num apartamento novo?”. Nada fazia sentido, nada, a não ser a dor lancinante que o atormentava.
(João Mãos de Tesoura)



Nada faz sentido...

sábado, março 05, 2005

Impulso (1)

Vítima das suas palavras, das suas próprias atitudes.
Quando criou o primeiro blogue fê-lo porque outros também o faziam, porque achava piada ao facto. Os primeiros comentários foram aparecendo timidamente com sabor a invasão de privacidade. Ao fim de algumas semanas surgiam em catadupa. Ricardo respondia sempre. No entanto começava a ter alguns problemas: os seus leitores…leitoras, na maioria, exigiam respostas de diferentes géneros, ou pelo menos assim ele pensava. O pseudónimo usado naquele blogue não lhe dava cobertura para tal. Surgiu um outro nome. Atrás do nome veio um endereço de e-mail diferente e, para que ambos tomassem consistência e credibilidade, surgiu também outro blogue: o segundo.
Daí à primeira troca de números de telefone foi um ápice. O passo para o primeiro encontro estava dado. O desconhecido trazia um sabor a medo e um aroma de excitação.
(Cereja Cristalizada)

Ajeitou-se na cadeira. Quase estendia a mão para outro cigarro. Conteve-se. Queria inebriar-se com a réstia de fumo do que apagara, e consigo, com a habilidade que lhe permitia mover os cordéis que manipulavam quem ele decidia fazer marioneta. De início, não seleccionara alvos. Lançara sementes na teia de cabos ópticos e esperou. Espera nunca passiva, antes alimentada pela rega, pelo tempo e adubo. Tal como em terra madura, as sementes germinaram e misturaram vidas, alimentadas no mesmo solo. Não dispersou atenção. Distinguiu as prometedoras das vãs e, sem deixar morrer as mais insípidas, seguiu com atenção distraída o crescimento das escolhidas. Distante, lúcido, simulando indiferença que não sentia. Ao ver o que pelas suas mãos nascia, redobrou cautelas, não passasse de lavrador a lavrado. Era esse o sentimento na precariedade que hoje o consumia. Acendeu novo cigarro.
(Tati)

Ninguém podia prever como as próximas semanas ou meses se iam desenrolar. Ricardo passava cada vez mais horas sentado à frente do seu computador, um companheiro fiel nas boas e más horas. Continua a escrever no primeiro blogue, mas a cada dia que passava o segundo blogue tinha mais adeptos. Vivia envolto num clima de mistério, tinha acertado no alvo quando resolveu criar o novo blogue, os temas aí debatidos davam azo à imaginação, quem poderia adivinhar que tal sucesso fosse possível.
(Ricardo)



O que escondiam estas mãos?

Impulso (2)

Enquanto viajava de carro olhava pela janela, estava nervoso, o primeiro encontro! Como seria? Para distrair-se ouvia uma música no rádio, mas o seu pensamento voltava sempre ao mesmo ponto de partida, que pensaria ela dele, que pensaria ele dela? Já havia meses que se falavam, nunca se tinham visto a não ser por fotos ou pela webcam, o medo invadia-lhe o corpo e a mente...
(Ricardo)

Conduzia sem ver o que tinha à frente. O pensamento estava perdido naquela voz cujo corpo ainda não tomara forma. Algo o fez acordar e voltar à estrada que tinha como único objectivo conhecer aquela mulher.
O local tinha sido marcado por ela. Ele, que sempre se considerara um sedutor nato, um manipulador do mais hábil que há, deixara-se levar. Não sabia como. A situação tinha extrapolado os limites aconselháveis. A voz do corpo falava mais alto e as emoções obedeciam-lhe. Que era feito da razão? Desaparecera por completo.
Seguiu as indicações dadas. Desviou-se da estrada principal e infiltrou-se por um caminho estreito, que quase conhecia de cor apenas pela descrição feita e revista vezes sem conta.
(Cereja em fondue de chocolate)

O carro já percorrera umas centenas de quilómetros. Desligou a música, queria tirar partido da paisagem e o silêncio bastava-lhe. Uma dor invadiu-lhe o peito como se ficasse sem ar. Abriu a janela e deixou que o sopro ameno da primavera invadisse o habitáculo.
O destino estava mesmo à sua frente, não ia falhar o encontro, não depois de tanto envolvimento, de tanta cumplicidade. Pegou no telemóvel, ia telefonar-lhe.
(João Mãos de Tesoura)



As marcas dos insectos no pára-brisas denunciavam a viagem...

Impulso (3)

O voice mail atendeu-lhe a tremura do gesto. Silenciou a da voz. Retardou um pouco mais o momento. O olhar abarcou o horizonte diluído na lonjura. O arco-iris descera aos campos do Alentejo – amarelos, alfazema, ocres profundos, todos os verdes num só. A planura contrariava o pico de emoção a que desde a madrugada se entregava num crescendo cujo fim conhecia.
(Cerise)

Olhar parado, pensamentos a mil. Agora já nada o impedia de continuar.
Mas os minutos que antecedem o confronto do imaginário com o real são momentos de tensão e de grande ansiedade.
Traçou um plano. Balbuciou palavras. Experimentou gestos.
No momento de todas as decisões o telemóvel tocou. Era ela.
- Pensava em ti.
- Eu sei - proferiu ela.
- Ia telefonar-te.
- Eu antecipei-me! – respondeu.
- Estás nervosa?
- E tu não estás? - e soltou uma gargalhada.
Eram contagiantes as gargalhadas dela e quente a sua voz.
Ricardo ficaria assim o resto dos seus dias, ouvindo-a, e construindo imagens de suporte para esta voz.
- Agora vem.
Foram as palavras dela em jeito decidido e autoritário. Era tarde para recuar. O destino estava ali.
(MWoman)

Ela sem saber que ele dela fugia. Porque se a realidade cansa, a ilusão também. Queria real com corpo, cheiro, pele. Com curvas doces a pedirem o vaguear lento das mãos. Lábios como cerejas que se abrem, maduras, ao verão. Cabelo solto lambido pelo vento. Pele misturada com a dele. Não uma qualquer, anónima apesar do nome. Mas a dela.

Sabia que a ilusão seria, irremediavelmente, estilhaçada pelo real. Ficaria contaminada. Sem préstimo. Jazendo com tantas outras no canto dos desperdícios. Porque, ao desmentir pela segurança e pragmatismo a vulnerabilidade aos sonhos, apenas se protegia com carapaça frágil. A emoção denunciava-o. Vê-la e partir sem amarras ou laços pendentes.
(Cerise)



Era tempo de falar...

Impulso (4)

Hesitou antes de desligar o motor. Apesar de tudo aparentava uma calma absoluta, salvo as mãos molhadas que o traíam.
(Cereja em fondue de chocolate)

Observou o prédio. Uma janela ainda aberta denunciava a espera. Ela estivera aí debruçada a mirar o infinito na incerteza do encontro, do desejo. Tirou uma embalagem de dodots do porta-luvas. Serviam para outras emergências; limpou as mãos e a cara; agora sim, sentia-se melhor. Agarrou num pequeno saco e saiu do carro. Avançou para a entrada do edifício num passo apressado. Tocou à campainha. A porta abriu-se sem que ninguém falasse, cumpria-se o combinado. No elevador pressionou o botão do quarto andar. As portas fecharam-se, já não podia voltar atrás.
"Porra, continuo a suar!", pensou. Um primeiro encontro é sempre uma novidade, excitante, e este tinha o sabor a proibido.
(João Mãos de Tesoura)

“Excelente! melhor do que imaginava!” – pensava Eva enquanto acendia a última de um conjunto de velas que conduziriam Ricardo até ao seu quarto.
Sentou-se na cama e olhou-se no grande espelho em frente. Só lhe conhecia a voz. Era quanto bastava. Por ora. Fechou os olhos.

Ricardo hesitou. Pensou voltar para trás. Mas algo mais forte o impelia ali. A porta estava entreaberta. Empurrou-a devagar. Nem sombra dela. Somente um cheiro forte e adocicado das velas queimadas. Premiu o saco contra si. Com a outra mão apoiou-se à parede. Sentia-se tonto. Hesitou mais uma vez mas agora era tarde de mais. Caminhava arrastando pernas e braços, e na sua cabeça ecoavam as palavras dela. “Agora vem!”, “Agora vem!”.
Parou à entrada do quarto. Um corpo, o dela, ali, naquela cama, como ele imaginara, ao som de uma música suave em carícias ritmadas.
(MWoman)



O corredor do destino...

Impulso (5)

A luz intermitente das velas dava um certo movimento às curvas do corpo que o aguardava quieto, ali à sua frente, num silêncio de consentimento..."Meu Deus, que visão", pensou ele.
As suas pernas tremiam-lhe como as pequenas chamas das velas que dançavam ao sabor da brisa que trespassava o quarto, um pequeno oásis de ar num dia infernal na atmosfera alentejana...o calor não ajudava a conter a transpiração do nervosismo e, encostado à ombreira da porta, teve ainda um acesso de hesitação...apetecia-lhe fumar um cigarro que o acalmasse de uma vez por todas antes do seu ritmo acelerar de novo, mas agora em comunhão de dois corpos que suam e que se esquivam entre apertões de paixão...sorriu e disse-lhe: "estás nervosa?"
(Lagarto)

Eva continuou deitada de frente, não lhe respondeu. O lençol cobria-lhe somente as pernas deixando à vista o corpo sensual onde as sombras realçavam as formas. O cabelo farto cobria-lhe a cara indo cair na borda da almofada. À volta da cama japonesa, velas há muito acesas libertavam a cera em movimentos lânguidos. Encostado à cabeceira, uma Maraca angolana esperava ser tocada a qualquer momento. O avô de Ricardo tinha trazido uma igual quando acabou a comissão militar. Trocara a arma pelo instrumento musical, troca justa, pensou.
Ricardo continuava à porta, a jogada seria sua.
(João Mãos de Tesoura)



As velas derretiam no desejo...

Impulso (6)

"Numa cama nunca! Não num quarto que me faz lembrar sexo conjugal!", disse-lhe ele num tom tão seguro que aparentava certezas que não existiam. Tomou-a em seus braços como numa pintura clássica, entre o seu corpo e o ar apenas um lençol branco caído até ao chão...
(Lagarto)

Ela não reagiu. Via-lhe agora o rosto, uma máscara veneziana sem expressão. Tentou tirá-la e só aí sentiu resistência. Ela balbuciou “tudo, tudo menos isso!”. Ricardo não conseguiu evitar o sorriso, era isto que ele esperava, ser surpreendido para além da sua audácia. "Espera!", disse-lhe Eva, "uma mulher nunca sai sem a carteira" e, apontando com o dedo, indicou-lhe um saco de viagem que se encontrava encostado a uma pequena cómoda. Pousou-a delicadamente no chão e agarrou o saco. Ela ajeitou o lençol à volta do corpo e disse-lhe, “vamos!”. Desceram no elevador sem se tocarem, mirando-se só. Entraram no carro e, num movimento brusco, Ricardo atirou o saco para o banco de trás. “És muito impaciente, podes ter partido os meus cristais...”, riu-se Eva. O ambiente estava criado.
(João Mãos de Tesoura)

Ele acelerou num misto de ânsia de chegar e vontade de se entregar já ali. Puxou de um cigarro que consumiu nervosamente num silêncio falso. "Para onde me levas?", perguntou-lhe ela depois de percorridos os exactos 5 minutos da precária existência do cigarro. "Vamos entregar-nos na natureza...”, ao que ela prontamente respondeu, “Grrrr! Olha que eu mordo!”, e agarrando-lhe a perna com força fez sentir as suas longas unhas por cima das calças. Ricardo não reagiu à dor, não a queria tocar. O desejo era demasiado forte e não queria estragar o momento. Saíram da estrada pouco depois, a ânsia de se tocarem não iria permitir maior viagem. O sinal foi dado por um sobreiro que ele fixara na vinda, uma árvore que se destacava por cobrir com a sua sombra um pequeno fio de água resistente aos primeiros dias de calor. Pararam. Ela não esperou.
(Lagarto)

Lançou-se no campo deixando cair o lençol. De braços abertos, sem nunca olhar para o carro, rodopiou numa dança que adivinhava o cio, que despertava todos os sentidos para um momento único, esperado, ansiosamente desejado. Ricardo saiu do carro e ela, sem demora, correu para baixo do sobreiro deitando-se na erva fresca que limitava o riacho. Com as mãos fez saltar água em movimentos erráticos, como uma criança surpreendida na contemplação da natureza.
Ricardo tirou os mocassins e dirigiu-se para ela. Era um homem interessante, não sendo belo não passava despercebido, tinha o glamour anglo-saxónico que herdara da mãe. A camisa e as calças em linho branco davam-lhe um ar angelical, distante da sua natureza, ele nunca fora inocente.
(João Mãos de Tesoura)



O ninho...

Impulso (7)

Eva rodou a cabeça para ele. Via-o caminhar descalço sobre o manto amarelo e com as madeixas libertas pela brisa. Gozou o momento. Não foram só as conversas inteligentes que a cativaram, o sorriso na webcam confirmou o que as fotos prévias denunciavam.
(João Mãos de Tesoura)

O seu lado africano rebelde, sensual e exótico renasceu subitamente em todos os poros que o seu corpo agora sentia. O sobreiro não era mais um sobreiro, não; o cheiro da terra, o calor no ar e a sombra pobre recordaram-lhe o imbondeiro da casa de seus avós. Um misto de medo e de desejo crescia nela, era tudo o que ela queria e o que mais temia, entregar-se da forma mais selvagem e, ao mesmo tempo, com a pureza de um momento consentido. Puro sentimento carnal, pura entrega, puro salto sem freios e amarras. Ela repensou e sorriu. Os únicos freios seriam as suas pernas à volta do corpo dele; melhor o prendesse, melhor se ficava.
(Elite / SweetRomanza)

Ricardo passou por ela e, sem se fazer esperar, entrou no ribeiro num passo lento. A água não lhe ultrapassaria os joelhos, mas o cenário estava criado para um desafio maior. Ela, lançando a cabeça para trás, fechou os olhos e sorriu. Levantou-se e lançou-lhe um ar provocador como se quisesse ser ela a determinar as regras do jogo. Um diamante colorido reluziu no seu umbigo, um ventre perfeito rematado numa jóia invulgar.
(João Mãos de Tesoura)



Na sombra do imbondeiro!

Impulso (8)

CONTINUEM!!! Leiam o RESUMO para terminar este capítulo!"

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

O engano (1)

O avião aterrou sem novidade. O dia estava cinzento e Heathrow não convidava; não é um aeroporto bonito, daqueles em que as gares nos esmagam com lobbies monumentais de aço e vidro. Ricardo chegou só mas a excitação era grande. Eva não iria falhar, não depois do que cresceu entre eles; a cumplicidade enraizara-se e com ela vieram as verdades, as ocultas. Ela era casada há 8 anos; não era infeliz mas não encontrava no casamento o sal da vida, não se sentia viva. Pediu-lhe para tolerar uma situação dúbia, algo que o tempo se encarregaria de resolver, só ainda não sabia como.
Tinham passados dois meses desde o primeiro encontro e a oportunidade surgiu quando Eva lhe falou numa feira em Londres. Ela era marketer da P&G e iria participar na apresentação de uma nova linha de produtos. Ricardo não deixou fugir a ocasião e sugeriu acompanhá-la. A pausa na resposta ao telefone deixou-o inseguro.

Eva: sabes que eu sou casada e vou com colegas...
Ricardo: sei... mas sei também que podemos contornar isso, basta querermos e usarmos a nossa imaginação.
Eva: ... tu tentas-me... ai, Ricardo, como seria bom...
Ricardo: vai ser, deixa-me tratar de tudo! Qual é o hotel?
Eva: olha, eu vou estar no Royal Garden (pausa longa)... querido, já me convenci... seria óptimo se pudesses ficar aí, assim dormíamos juntos...
Ricardo: claro que ficamos, a Space nunca me falhou uma reserva, nem mesmo as last minute. Já agora aproveitamos e ficamos o fim-de-semana, assim teremos dois dias só para nós!
Eva: tu és terrível... está bem! Vou dizer ao Artur que aproveito para visitar uma amiga de faculdade que vive em Knightsbridge.
Ricardo: e sou eu o terrível... (risos)
Eva: não me provoques, tu não me provoques que ainda desisto! (risos)
Ricardo: e à noite acordavas e pensavas em mim?
Eva: e mais qualquer coisa...
Ricardo: hmmm... tenho de ver isso!
Eva: agora vai, chato... tenho de trabalhar!
Ricardo: e eu também, tu é que pensas que a vida é fácil e que as viagens caem do céu! (risos)
Eva: pois... falamos logo, beijinhos!
Ricardo: beijo!

Viajar de táxi em Londres é uma experiência única. Não só porque o london cab não tem igual, mas também porque circular pela esquerda nunca deixa de ser estranho. O trajecto foi agradável e ele aproveitou para relembrar uma viagem que fizera com os pais há muitos anos atrás.
O táxi entrava agora no parque do hotel. Como era belo; a secretária que lho marcara tinha razão, seria certamente um dos hotéis mais belos da cidade. Já no lobby dirigiu-se à recepção. Fez um check-in rápido pois a vontade de um banho era muita. Tinha um recado, era dela.

“Querido, tive de sair mais cedo, chegarei por volta das cinco. Aproveita e descansa, vou precisar de ti em forma! Beijos, Eva”.

Dirigui-se aos elevadores quando se cruzou com um grupo de italianos que entrava ruidosamente numa das salas de reuniões do hotel. Voltou atrás por impulso. Na recepção um dos funcionários apressou-se a perguntar-lhe se estava tudo bem. Ricardo sorriu e disse que ainda era cedo para reclamações. A pergunta que tinha era simples, a resposta foi devastadora. Não havia nenhuma feira de consumíveis, Eva não viera em trabalho!
(João Mãos de Tesoura)



A cama era king size...

O engano (2)

Instalado o mistério, agora só faltava descobrir todas as peças do puzzle e depois juntá-las…
“ Porque raio me mentiu ela?”- pensava Ricardo enquanto se dirigia ao elevador.
Tão absorto estava que nem se dera conta de alguém que seguia todos os seus gestos.
“Vou pôr-me em campo e tratar de fazer alguns telefonemas!”

Começaria por telefonar para a empresa onde Eva trabalhava. Mas, à medida que organizava ideias e tomava decisões, ia-se instalando algum desconforto e muitas dúvidas.
Entrou no quarto e sem prestar grande atenção ao espaço que o rodeava, procurou o telefone...
(Eva[são])

Do outro lado da linha o sinal continuo de "ocupado". O nervosismo começava a aumentar, pois cada chamada era uma tentativa falhada. O telemóvel de Eva estava desligado e do escritório dela ninguém atendia. O que se passaria? Sentia-se completamente desorientado.
Arrefecer as ideias. Era isso que necessitava fazer. Um duche talvez não fosse má ideia. Como um autómato dirigiu-se à casa de banho e abriu a torneira da água quente. Voltou atrás e olhou o telefone pensativamente. Entrou no banho para relaxar. Nada como um longo duche de água quente. Sempre fora este o método mais eficaz de por as ideias em ordem, nunca falhara, não iria ser agora.
Completamente absorto nem se deu conta da entrada de alguém no quarto. Subitamente apercebeu-se de que não estava só, pois havia qualquer coisa no ar que denunciava uma presença. Ricardo reconheceu o odor que lhe entrava pelas narinas e lhe enchia os pulmões. Eva estava ali. Cego de todos os sentidos nem se questionou como ela teria entrado.
Envolto numa toalha irrompeu no quarto. Não se enganara. Ali estava Eva, como uma miragem, mais sedutora do que nunca.
(Cherry Pie)

Ricardo, estupefacto, balbuciou: mas, não vinhas... às cinco?
Eva: hmmm... parece que não gostaste de me ver... (sorriso)
Ricardo, disfarçando: sempre que te vejo fico assim, aparvalhado...
Eva: hahaha! Gostava de te ver com essa cara, há-de vir o dia...

Ele, aproximando-se, agarrou-a e olhando-a nos olhos penetrou para além do azul; o seu olhar era sedutor, era ele quem dominava. Eva, percebendo o momento, deixou-se ir na corrente do desejo. Ricardo levantou-a no ar e deixou-a enredar as pernas no seu torso. Enquanto se beijavam apaixonadamente, percorreu o quarto até a encostar à parede, mesmo ao lado da cama de dossel em ferro forjado, uma peça única, como todas as outras do hotel. Ela gemeu no embate, sorrindo de seguida a aprovar o desafio. Eva desceu com as mãos no peito e, num movimento só, arranhou-lhe a pele.

Ricardo: estás louca?
Eva, sorrindo: no rules... ok!
Ricardo: no skin... for sure!
Eva: hahaha! Adoro-te!

Deixando-se cair para o lado, Ricardo projectou-a para cima da cama. O colchão devolveu-a como uma mola num pequeno salto que a fez rir. Abraçaram-se e rebolaram na cama como dois miúdos. Eva ficara por cima dele, sentada, com um sorriso provocador.

Eva: fecha os olhos!
Ricardo: para quê?
Eva: nunca se questiona uma surpresa!

Ricardo, fechando os olhos, deixou escapar um longo suspiro como quem espera o prazer; sentia-se egoísta, queria receber. Eva, agarrando um lenço pousado numa das mesinhas de cabeceira, vendou-lhe os olhos.

Ricardo: que fazes?
Eva: calma, vais gostar!

Não lhe falaria agora, pensou, teria de haver uma explicação plausível. Aquela mulher nunca fora mistério, desde o início que lhe mostrou as cartas e ele conhecia bem as amarras e caminhos por onde ela andava. Fora sempre franca, nunca lhe escondera nada, nunca, nem os temas mais íntimos como um aborto...
Eva, agarrando-lhe um pulso, algemou-o à cabeceira num gesto rápido. Ainda não se tinha recomposto da surpresa e já Eva lhe algemara o outro pulso. Ela, pressentindo o espanto disse-lhe, “relaxa... estás por minha conta e vou-te levar aonde nunca foste, nem nos teus sonhos mais loucos!”
Batem à porta insistentemente.

Ricardo: o que se passa?

Agora o tom era de pânico. Eva, retirou-lhe a venda e colocando-lhe o indicador na boca fez, “Schhhh!”. Levantou-se, recompôs o vestido e dirigiu-se à porta da suite que ficava noutra sala. Ele conseguia ouvir as vozes em sussurro, como se quisessem esconder algo. O tempo parecia uma infinidade e Ricardo começava a impacientar-se, foi então que gritou, “Eva, então?!”.
Os passos fizeram-se sentir na sua direcção, não seria só ela, viria acompanhada. Entraram no quarto; ao lado de Eva uma mulher asiática, japonesa pelos traços ligeiramente angulosos que as diferenciam das chinesas; esta dispara de pronto: “Is this the guy?”. Eva, sorrindo, confirma com um movimento de cabeça. Saem do quarto deixando atrás de si a porta fechada. Ricardo não esboçou um gesto, não proferiu uma palavra. O assombro era tal que não percebera que estava encarcerado no seu próprio quarto.
(João Mãos de Tesoura)



Preso ao amor...

O engano (3)

Ficou entregue a si próprio enquanto pelo seu espírito passavam os mais díspares pensamentos. O silêncio tomava conta do ambiente e ele ia reparando angustiado nos pormenores do espaço onde estava. Com esforço, rodou a cabeça e olhou para o telemóvel tentando alcançá-lo com os pés mas sem sucesso. Embora não conseguisse distinguir os números, viu como os dígitos iam mudando de minuto a minuto marcando angustiados a passagem do tempo. A pouco e pouco os sons mais íntimos iam tomando volume. Ouviu o latejar do coração nas têmporas lembrando-lhe que a vida depende apenas do ritmo, esse bater contínuo que agora tanto o incomodava. Pequenos ruídos que passavam do exterior e que ele adivinhava vagamente. Por duas vezes gritara por ela mas o som perdera-se no isolamento do quarto. Os hotéis tendem a ter cada vez melhores isolamentos acústicos e ele pensou que nem um tiro de carabina chamaria a atenção fosse de quem fosse. As mãos doíam-lhe e nos pulsos estavam vincadas as algemas que os imobilizavam. Tentou rodar o corpo para uma posição mais confortável e verificou com desagrado como estava entorpecido. Quanto tempo teria já passado? Perdera a noção mas tinha a sensação que várias horas tinham decorrido.
Meio adormecido deu sinal de si num relance. Olhou para a porta e viu um vulto entrar. Tentou levantar-se mas com um grito de dor voltou a cair na cama.
Gritou: tira-me daqui imediatamente!
O vulto, coberto com uma capa que lhe escondia a cara, colocou em cima da mesa um pequeno pires. Despejou o conteúdo. Umas ervas em cima das quais ele deitou umas gotas dum líquido espesso e esbranquiçado. Acendeu um isqueiro e esperou que estivesse bem incandescente. Soprou uma ou duas vezes e depois retirou-se.
Pesasse embora a fraca iluminação com que elas tinham deixado o ambiente horas antes, tinha conseguido aperceber-se que se tratava da asiática que estivera com Eva. Aos poucos ficou tudo cheio de fumo. Um aroma doce e acre enchiam-lhe as narinas batendo-lhe directamente no cérebro. Sentiu-se transportado numa enorme nuvem de paz para um mundo onde os sonhos tomam o lugar da realidade e adormeceu.
Acordou de repente no meio duma enorme algazarra. Estava escuro e toda a cama mexia. Sentiu que não estava já algemado à cama embora continuasse com os pulsos presos. Tentou levantar-se e bateu com a cabeça em algo metálico. Caiu repentinamente num movimento brusco. Só aí se deu conta que estava preso e amordaçado dentro do porta-bagagens dum carro...
(Charlie)



Quem o teria vestido e amarrado? Porquê?

O engano (4)

Pouco podia fazer, pois estava fortemente amarrado e qualquer esforço tirar-lhe-ia as energias que, provavelmente, necessitaria mais tarde. Ricardo perdeu a noção do tempo. Sentia o carro deslocar-se a uma velocidade alucinante sem uma única paragem durante, o que lhe pareceram ser, horas de viagem.
O carro parou. Mais atento que nunca Ricardo tentava escutar o que se passava do lado de fora. Deviam estar num local isolado pois só o silêncio se fazia ouvir. Sentiu passos aproximarem-se da bagageira do carro. Ficou sem saber o que fazer: fingir-se adormecido ou mostrar-se bem acordado? Naquele momento a primeira opção pareceu-lhe a mais acertada, afinal todos os seus sentidos estavam despertos.
Acompanhou com atenção todos os movimentos: alguém abriu a bagageira; foram-lhe tiradas as amarras e a mordaça e sentiu-se levado por duas pessoas - homens, certamente, pelo tamanho das mãos que o seguravam. Estava livre, mas decidiu continuar com o fingimento.
"Libertaram-me. Deste modo posso fugir se algo correr mal...como se pudesse estar a ser pior!", pensou.
Sabia que estava perto do mar: os odores não enganavam e podia ouvir as ondas a embater contra uns rochedos. Entraram numa casa. Cheirava a limpo.Só quando se sentiu pousado sobre uma cama macia e ouviu os passos dos seus sequestradores a se afastarem que Ricardo reagiu.
Abriu os olhos. Não podia acreditar no que via. O local era idílico. Estaria a sonhar? Ouviu água a correr e dirigiu-se para o local de onde vinha o som. Empurrou a porta. Numa banheira cheia de espuma estava Eva munida do seu melhor sorriso:"Amor, porque te demoraste tanto? Vem, junta-te a mim!"
(Cerejinha)



Seria tudo um jogo?

O engano (5)

Ele sentia crescer dentro de si um turbilhão de sensações e emoções contraditórias. Por um lado, sentia-se manipulado e enganado com toda esta encenação de Eva. Quem seria ela afinal? Por que motivo o teria convidado para uma viagem a Londres para depois raptá-lo até àquele lugar? Por outro lado, desejava-a ainda mais. Todos esses contratempos tinham despertado toda a lascívia do seu corpo.
Não lhe respondeu. Falar para quê? Agora só queria dar asas ao seu desejo...
(Jacky)

Sem proferir uma palavra e sem permitir que um único músculo da cara denunciasse a sua surpresa, descalçou os sapatos pausadamente e, com um gesto metódico, alinhou-os junto ao magnífico arranjo de cactos e seixos rolados do canteiro que imponentemente dominava aquele ângulo, bordejando a enorme parede de vidro sobranceira à vista de mar. Mantendo sempre a perfeita tranquilidade dos movimentos, avançou para a banheira sem nunca desviar os seus dos olhos dela. Queria que Eva experimentasse o suspense do improvável. Não era aquele um jogo? Então, era a sua vez de jogar.
Completamente vestido, entrou na banheira como quem se afoga, deixando o corpo conduzir os anseios de dentro para fora, mas sem permitir que as sensações circulassem de fora para dentro. Sentia a água tépida alastrar pelas suas roupas até o ensoparem, mas agia como um monstro que não sente, apenas devora. Eva, apanhada pela surpresa, imobilizou numa expressão entre o desejo e o medo. Ricardo podia, enfim, perceber que podia executar todos os seus planos de vingança; um dia era caça, outro caçador.
(Lince da Malcata)



Agora a tacada é minha!

O engano (6)

A expressão de Ricardo não deixava transparecer nenhuma réstia de emoção, tinha um ar penetrante e duro. As bolhas da hidromassagem invadiam a banheira; passou os dedos dos pés num gesto lento e demorado pelo corpo de Eva enquanto esta tentava alcançá-lo. Ele impediu-a de se mover num gesto delicado e ao mesmo tempo insensível, sentia que devia ser ele a dominar; as cartas estavam lançadas e ele detinha a jogada mais alta.
Eva estava deitada na banheira com a nudez que ele já conhecia; ele, vestido e ensopado, olhou-a olhos nos olhos ao mesmo tempo que o seu pé parava de a acariciar para, lentamente, ir aproximando os corpos. Eva deixou transparecer o desejo e disse em tom baixo, "Vem meu querido, sou toda tua!" e fechou os olhos à espera. Contudo, Ricardo parou, “como podia uma mulher tão bela ser tão maquiavélica”, pensou.
Esta mulher tinha enfeitiçado Ricardo. No seu íntimo ele sentia um desejo inexplicável de a possuir; aproximou o seu rosto à cara dela, começou a acariciá-la, passou a língua no pescoço, um toque apenas. Eva sentiu um arrepio, abriu os olhos e começou a desabotoar-lhe a camisa. A roupa molhada evidenciava-lhe as formas e ela, enquanto o despia, olhava maravilhada para aquele corpo perfeito sem o exagero do esforço nem a gordura sedentária. Passou-lhe as mãos pelo peito e começaram a beijar-se de uma forma selvagem e apaixonada. Nesse momento os seus corpos tocaram-se provocando em ambos a ânsia pelo passo seguinte. Ricardo estava a deixá-la completamente louca de desejo... Assim ficaram durante um tempo que pareceu infindável, até que Eva murmurou palavras que o deixaram estupefacto, "amo-te!". Ricardo, suspeitou do jogo, sorriu com ar sarcástico e disse "agora sim, estamos quites...". Levantou-se, saiu da banheira e o seu corpo desapareceu na névoa do banho.
(Eva)

Eva sentiu medo, “será que ele sabe?”. A luz apagou-se e ela recolheu as pernas num reflexo defensivo, ficando sentada na posição fetal; a escuridão foi acompanhada pelo som da água que ia e regressava em ondas provocadas pelo movimento inusitado. Olhou à volta e fixou-se no raio de luz que entrava pela fresta da porta. Milhões de gotículas dançavam no feixe, subindo e descendo num movimento caótico. Repentinamente algo se atravessou à frente do clarão, ficando o espaço confinado ao silêncio do seu pânico. Sentiu frio, um desconforto insuportável mas permaneceu imóvel; os músculos não lhe respondiam, estava completamente indefesa. Num esforço sobre-humano, esticou o braço e tacteou o chão à procura do telemóvel. O gesto era em câmara lenta, com o vagar de quem não quer ser notado. Os dedos sentiram algo, pareciam ser os seus chinelos, mas não, eram sapatos de homem. Tentou empurrá-los mas não se moveram...
(João Mãos de Tesoura)



De quem seriam estas mãos?

terça-feira, janeiro 04, 2005

Na corrente do Bengo (1)

No quarto, sentado, num cadeirão velho de veludo gasto e esverdeado, Tiago, amorfo, já só mantém do antigamente a tez bem morena que lhe ficou por herança. Tudo o resto são memórias e rugas finas, indeléveis. Deixa-se ficar parado no tempo porque lhe facilita o presente. Em determinadas circunstâncias até sorri, ainda que ninguém o veja. Um sorriso trocista, irónico. Volta a ser o menino que corria pela imensa praia de águas quentes, atrás de caranguejos que nunca conseguiria agarrar. Fica a sorrir. Os caranguejos ludibriavam-no, fugiam-lhe ali mesmo à beira mar ainda que ele se sentisse um reizinho naquela imensidão toda.
Tinha sido um miúdo feliz, feito para aquela terra que também era feita à sua medida. Haveria de saber o que era ser-se desterrado. De Angola só conheceu Luanda, porque já lá estava quando abriu os olhos a sério. O Lobito, onde nasceu, ficara para trás. Mantinha-se apenas nos álbuns de fotografias da família. Quando os revê – o que agora é raro – até nas fotos a preto e branco consegue sentir na pele toda a luminosidade quente que Luanda ainda hoje emana. Uma luz especial que tudo recorta, como se se fotografasse sempre em sobre exposição. Depois o sorriso morre. Basta um som da televisão ou lá de dentro, do resto da casa, e retorna a uma melancolia quase estudada.
No passado cometeu alguns erros irreparáveis – sim, de alguns ainda se recorda - que prefere esconder debaixo daquela apatia para a qual suga como se fosse um redemoinho todos os que entram no quarto – e por isso na maioria das vezes já ninguém lá vai. Até porque de cada vez que ouve o seu nome na outra ponta da casa prefere ser ele a ir rapidamente, demasiado até para alguém que se mantém horas a fio aparentemente imóvel no cadeirão. E isso tranquilizava-os; podem varrê-lo novamente do presente para o quarto dele. E ele volta, volta sempre para as suas águas mornas do mar de Luanda, volta para o cadeirão velho, volta para um passado quase igual a uma rede de pesca por remendar, mas que é o dele.
Sabe no entanto do “acidente” – como lhe chama - um atropelamento com fuga que o deixou com uma amnésia parcial que se recusa a regredir. E o cadeirão velho transforma-se ainda mais num local estafado de auto-análise, uma tentativa desesperada da mente resgatar um passado que teima em ocultar-se. Ainda assim, nunca se detém no motivo do “acidente”, deixa-o à deriva no passado. Quando o puzzle estiver completo – se alguma vez estiver - talvez o compreenda.
O carro saíra do nada e pelo ruído pressentira uma raiva que não combinava com o calor húmido contra o qual avançava devagar, com passadas pesadas. Fora do quarto, em voz baixa, as suposições tinham-se feito sentir, mas apenas em tempos, quando a casa era outra, o quarto era outro, e a terra ainda era Luanda. Depois ele próprio começara a ficar gasto e longínquo e acabara por se tornar desinteressante até para as poucas pessoas que ainda por ali deambulavam e lhe tinham conhecido partes do passado. Mais uma vez a transparência resvalava para a total invisibilidade como um vidro acabado de polir.
Só uma pessoa lhe poderia contar partes desse passado sem que ele duvidasse, mas nunca mais a procurara.
(Raquel Vasconcelos)


O que esconde este rio?

Na corrente do Bengo (2)

Do largo da Mutamba, subiu devagar a leve inclinação que leva os transeuntes até à parte alta de Luanda onde ficam o Maianga e alguns edifícios militares da época colonial reconvertidos. A Alameda Afonso Henriques vendia sombras e cheiros que lhe pareciam estranhos. Agora tudo se vende, pensou; e quanto mais se vende menos há para vender. Meios tons e mais buracos, manchas e casas sem vidros. Tinha saudades da Luanda doutras eras, dos aromas e das cores que enchiam os ares, mas a fé num país novo tinha-o forçado a ficar e a passar por todas as dificuldades e desafios. Haveria de mudar um dia; a paz recente fez despertar de novo a vontade de ficar, o amor por este país estava enraizado na sua alma.
Tinha vindo desde a Restinga a olhar demoradamente a língua de areia a que os locais chamam de ilha, que separa as águas da baía das do oceano e que banha o Mussulo. Continuou junto à baía, regressando ao Estádio dos Coqueiros junto à orla do mar, como que a querer reviver os dias vividos projectando-os no futuro! Parou um pouco no Largo Serpa Pinto como se tivesse entrado na máquina do tempo...
Aquele telefonema tinha-lhe relembrado episódios dramáticos ocorridos uns anos antes. E aquela voz... pensou que tivesse morrido. Mas se não morreu de quem seria o corpo carbonizado encontrado junto ao mercedes metralhado? Num sítio onde nada se resolve, tinha sido espantoso o desfecho rápido do caso. Mas agora que começava a juntar tudo, receava pela sua segurança. Algo de muito sério se tinha passado e ele era um elo forte. O seu testemunho poderia desfazer álibis e incriminar gente importante. Todo o cuidado era pouco. Foi ao encontro marcado seguindo o percurso que lhe deram, garantido que não era seguido.
Do outro lado do largo do Maianga estava um carro parado. Lá dentro alguém lhe fez sinal....
(Charlie)



Largo do Maianga

segunda-feira, janeiro 03, 2005

O engano (3)

CONTINUEM!!! Leiam o RESUMO para terminar este capítulo!"